A REGULAMENTAÇÃO DOS NOVOS DISPOSITIVOS DA LINDB – FUNDAMENTAÇÕES NAS DECISÕES
Marco Antonio Pizzolato
Mayana Cristina Cardoso Cheles
Santa Bárbara d’Oeste, 22/06/2019
Em abril do ano de 2018 fora acrescidos novos dispositivos legais à Lei de introdução ÀS Normas do Direito Brasileiro (Decreto-lei 4.657/42), anteriormente denominada Lei de Introdução ao Código Civil que, tem, por finalidade precípua de disciplinar a aplicação das normas jurídicas brasileiras, do que, é considerada uma norma “intra legis”, já que contém um conjunto de preceitos que regulam a vigência, validade, a eficácia, a aplicação, interpretação, revogação e ainda, releva alguns princípios constitucionais necessários a harmonização do sistema jurídico, tais como ato jurídico perfeito e acabado, coisa julgada e direito adquirido.
Assim, na condição de norma “intra legis”, traz em si o princípio da irretroatividade da norma legal, salvo para beneficiar o infrator, e, define ainda, as condições para ocorrência da ultratividade e efeito repristinatório.
Os dispositivos inseridos na LINDB o foram pela Lei nº 13.655, de 2018, de autoria do Senador Antonio Anastasia.
Segundo o parecer da Relatora Senadora Simone Tebet, o advento dos novos dispositivos legais à LINDB teve por fim “…A proposição, ao incluir na LINDB os arts. 20 a 29, visa a melhorar a qualidade da atividade decisória exercida nos diversos níveis (federal, estados e municípios), dos Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) e dos órgãos autônomos de controle (Tribunais de Contas e Ministério Público) e garantir, com isso, a eficiência e segurança jurídica na criação, interpretação e aplicação das normas de Direito Público”.
A normatização em comento exsurge de estudos e no anteprojeto elaborados pelos professores Carlos Ari Sundfeld e Floriano de Azevedo Marques Neto.
As noveis disposições consagraram princípios que devem ser observados pelas autoridades administrativas e judiciais “…nas decisões baseadas em indeterminadas (arts. 20 e 21); confere aos particulares o direito à transição adequada quando da criação de novas situações jurídicas passivas (art. 22); estabelece o regime jurídico para negociação entre autoridades públicas e particulares (art. 23); cria a ação civil pública declaratória de validade, com efeito erga omnes, de atos, contratos, ajustes, processos e normas administrativas (art. 24); impede a invalidação de atos em geral por mudança de orientação (art. 25); disciplina os efeitos da invalidação de atos em geral, para torná-los mais justos (art. 26); impede a responsabilização injusta de autoridade em caso de revisão de suas decisões (art. 27); impõe a consulta pública obrigatória para a edição de regulamentos administrativos gerais (art. 28); e determina a compensação, dentro dos processos, de benefícios ou prejuízos injustos gerados para os envolvidos (art. 29)…”, conforme assim o definem os próprios professores.
Sancionados os dispositivos “intra legis” pelo Presidente da República no ano de 2018, neste segmento, através do Decreto nº 9.830 de 10 de junho de 2019 (dispositivo previsto no artigo 84, inciso IV da CF0, da própria presidência, visando regulamentar a aplicação de referidos artigos da LINDB.
Uma das matérias mais fascinantes e de maior discussão nesse momento em nosso sistema jurídico é a obrigação de do julgador fundamentar as decisões adotadas, ou seja, nos termos do artigo 93, inciso IX da CF, “…todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade,…”.
S.M.J., a disposição constitucional é por demais clara e independia de regulamentação para informar o que é uma decisão fundamentada.
Com o advento do CPC/15, por seu artigo 489 a obrigatoriedade da fundamentação e extensão da mesma na decisão judicial voltou a discussão, já que ali se elencou requisitos necessários no ditado, sob pena de nulidade, o que, diga-se, pareceu ser uma disposição legal para estabelecer em definitivo o conceito e condições de uma decisão fundamentada.
Em verdade, as decisões judiciais mantiveram-se nos moldes de fundamentação, o que, diga-se, ensejou fosse editado o artigo 20 da LINDB, uma norma “intra legis”, que impôs a presença de “fundamentação concreta” nas decisões administrativa e judicial.
Esse conceito de fundamentação concreta vem externado no parecer da CCJ do Senado Federal, de subscrição da senadora Simone Tebet, “permissa data”:
“
Os arts. 20 e 26 do projeto em análise visam a positivar o princípio da motivação concreta, inclusive para a invalidação de atos. Proíbe o administrador (ou a qualquer outro aplicador de normas de direito público) de invocar “cláusulas gerais” ou “conceitos jurídicos indeterminados” para explicar os concretos motivos de seu agir, ou quando da invalidação de atos ou contratos”.
O Decreto nº 9.830/2019, ao regulamentar os novos dispositivos da LINDB, a partir do seu artigo 2º deixou patente o conceito de fundamentação concreta, sob os títulos de “motivação e decisão”, “motivação e decisão baseadas em valores jurídicos abstratos” e “motivação e decisão na invalidação”.
A regulamentação, por seu artigo 2º, disciplina que a motivação conterá seus fundamentos, diga-se, concretos como determina os artigos 20 e 26 da LINDB e, apresentará, de forma argumentativa, o nexo causal entre as normas e os fatos que ensejaram sua edição, e, para tanto, para alcançar essa finalidade, deverá indicar as normas, a interpretação jurídica aplicada, a jurisprudência ou, a doutrina que a embasaram.
Como se depreende lógico, resta afastada a hipótese de decisões “per relationem” já que, sem vinculação específica ao processo em análise e, pela generalidade das mesmas.
A exceção admitida pelo parágrafo do artigo em comento, registra que a motivação poderá ser constituída de declaração de concordância com o conteúdo normas técnicas, pareceres, informações, decisões ou propostas que, antecederam a própria decisão e que, por lógico, deve ter específica aplicação sobre o objeto do processo.
Já ao dispor, no artigo 3º sobre decisões tiradas com base em valores jurídicos abstratos, além de conceituar esses valores como “…aqueles previstos em normas jurídicas com alto grau de indeterminação e abstração…” e, a partir daí, impõe que seja indicada a consequência prática da decisão, e, ai dispõe que o julgador “….apresentará apenas aquelas consequências práticas que, no exercício diligente de sua atuação, consiga vislumbrar diante dos fatos e fundamentos de mérito e jurídicos.”
Nesse dispositivo exige que a motivação demonstre a necessidade e a adequação da medida imposta, o que deve ser feito com a consideração sobre as “…possíveis alternativas e observados os critérios de adequação, proporcionalidade e de razoabilidade.”
O artigo 4º do mesmo decreto, ao tratar da motivação nas decisões que decidam sobre, aí, especificamente, sobre atos administrativos dispõe que a “…invalidação de atos, contratos, ajustes, processos ou normas administrativos...”, observará o disposto no artigo 2º do mesmo decreto e, independentemente de se tratar de valores jurídicos abstratos, indicará de modo expresso, as consequências jurídicas e administrativas da decisão, o que dispôs em regulamentação do artigo 24 da LINDB, ao mesmo tempo que os artigos 2º e 3º referem-se a todas as decisões administrativas e judiciais, em face de qualquer matéria, consagrando, assim, o princípio da fundamentação concreta.
A expectativa gerada com o advento dos novos dispositivos da LINDB e suas regulamentações é a de que, finalmente o artigo 93, inciso IX da CF, seja aplicado em toda sua extensão, ensejando o advento de decisões fundamentadas e motivadas concretamente.
Marco Antonio Pizzolato – advogado, especialista em Direito Processual Civil pela PUCCamp, sócio da M. A. Pizzolato Advogados Associados.
Mayana Cristina Cardoso Cheles – advogada, especialista em ciências criminais pela FAINOR, especializando em gerência ambiental pela USP-ESALQ
REDES ELÉTRICAS: RECUPERAÇÃO DO INVESTIMENTO E A DECLARAÇÃO DE DIREITO DE LIBERDADE ECONÔMICA
Já tivemos a oportunidade de afirmar que o sistema de distribuição de energia elétrica no Brasil é de responsabilidade da União e realizado através de concessões públicas nos termos do artigo 21, inciso XII, letra “b” da Constituição Federal, ou seja, migrou da atividade de prestação de serviço estatal pura para concessão de serviço público e, regulamentada por lei, hoje está vinculado a agencia de energia – ANEEL.
A companhia distribuidora é uma empresa particular ou de economia mista e é concessionária de serviço público e, o contrato da mesma com a ANEEL, decorrente de licitação pública regrada pelo Decreto Federal n° 98.335/1989.
Como todo serviço essencial, existe uma política de expansão da rede de distribuição tanto para alcançar a toda população, como também todas atividades econômicas e, essa expansão é financiada por uma parcela do preço da energia consumida, conforme consta do sítio da ANEEL, onde consta a informação de como o preço da tarifa é processado: “A ANEEL utiliza este mesmo programa e informações para estabelecer a tarifa de transmissão a ser usada para o cálculo dos encargos de cada usuário. Como o sistema está em permanente expansão, com o acréscimo de novas usinas e linhas de transmissão, este valor é recalculado todos os anos.”
O contrato firmado pelas concessionárias de serviço com a ANEEL, importa em que, ao se definir o preço do serviço a ser cobrado no período anula, ou seja, o preço da tarifa de energia elétrica, inclui-se no “mix” de referido preço, uma parcela destinada à expansão da rede, ou seja, o preço para a expansão da rede elétrica já se encontra previamente pago na “conta de luz”, posto que, ao ser estabelecido o reajuste anual, a concessionária informa o quanto de rede prevê expandir.
Não é por menos que o artigo 136 do Decreto Federal n° 98.335/1989 determina que concessionária deve oferecer o serviço público de eletricidade no ponto de entrega, ou seja, no ponto de consumo, na forma regulada pelo DNAEE (que foi substituído pela agencia reguladora ANEEL). Essa disposição, somada as normas legais, resoluções, portarias autoriza concluir no sentido de que a rede de distribuição de energia elétrica deve ser edificada pela concessionária pública, sem ônus para o consumidor, além do financiamento já incluso na conta de energia. Tais condições decorrem de normatização legal.
Neste sentido, tanto as necessidades dos particulares (loteadores ou pessoa física), bem como da administração pública, devem ser atendidas pelas concessionárias sem ônus, ou, se o valor da expansão for antecipado pelo particular ou pela administração pública, ante a construção da rede, o mesmo deve ser ressarcido.
Ocorre que, tanto no âmbito da administração pública como nos novos loteamentos, as concessionárias exigem que se aprove, previamente, o projeto da rede a ser instalada e, ao depois, para energizar a rede, exigem que a mesma lhes sejam doadas.
Sempre defendemos a ideia da ilegalidade de referida condição, já que se trata de uma doação compulsória, nossas cortes, de forma equilibrada vinham decidindo a favor e contra a pretensão.
Dessas decisões favoráveis aos empreendedores
pode-se destacar: Apelação 0037236-23.2009.8.26.0114 – 3ª Câmara de Direito Privado TJSP; Apelação 0025172-15.2008.8.26.0114 – 07ª Câmara de Direito Privado – TJSP; Ação Rescisória 0020718-38.2011.8.26.0000 – 10º Grupo de Direito Privado TJSP; Apelação 7.205.901-3 – 14ª Câmara de Direito Privado – TJSP; Apelações 7.087.905-9 e 0009614-11.2010.8.26.0024 – 19ª Câmara de Direito Privado TJSP; Apelação 0067615-95.2009.8.26.0000 – 25ª Câmara de Direito Privado – TJSP; entre outros e que, basicamente são fundamentadas na impossibilidade das concessionárias se enriquecerem ilicitamente.
Em sentido contrário a tese de que as concessionárias devem ressarcir aqueles que investem em redes de distribuição de enérgica para atender suas necessidade, os fundamentos que vinham sendo aplicados em decisões judiciais era a vedação de ressarcimento dos valores disposta na Resolução nº 082/2004 ANEEL e mais, que a rede elétrica, enquanto obra de infraestrutura, segundo a Lei nº 6.766/79 é de responsabilidade do loteador e que esse, ao alienar as unidades de lotes de terrenos incluem esse valor de infraestrutura no preço do imóvel.
A Resolução nº 082/2004 já foi revogada e, a disposição realizada que impunha a incorporação graciosa da rede construída por terceiro ao patrimônio das concessionárias já está superada e, pela Resolução ANEEL Nº 414/2010 as concessionárias estão obrigadas a realizarem o ressarcimento dessas redes para poderem incorporá-las ao seu patrimônio, o que afasta a possibilidade de oposição dessa resolução em defesas processuais.
Não obstante o afastamento daquela suposta excludente de responsabilidade das concessionárias, as mesmas negam-se a agir na forma da lei e ainda se respaldam no artigo 2º, §5º da Lei nº 6.766/79 para se oporem judicialmente à pretensão de ressarcimento.
Aqui estamos lançando mão de um novo enfoque para afastar essa equivocada linha de defesa, ratificando a necessidade das concessionárias de indenizar os loteadores, já que, a disposição legal em comento, ou seja, a remessa ao artigo 2º, §5º da Lei nº 6.766/79, não autoriza essa interpretação. Essa disposição legal refere-se, unicamente, a “iluminação pública” e não a rede elétrica, conforme se depreende do seu parágrafo quinto: “§ 5º A infraestrutura básica dos parcelamentos é constituída pelos equipamentos urbanos de escoamento das águas pluviais, iluminação pública, esgotamento sanitário, abastecimento de água potável, energia elétrica pública e domiciliar e vias de circulação.”
Como se verifica ao tratar da infraestrutura básica, lei dos loteamentos não faz constar a rede de distribuição elétrica como obra de base e que responsabiliza o loteador. A infraestrutura que elege deve estar presente, porém, não importa dizer que seja do mesmo a obrigação de custeá-la. Por exemplo, a iluminação pública é de responsabilidade do município por disposição constitucional e, nos municípios onde a TIP é cobrada, sua destinação inclui a instalação da rede de iluminação, “sic ut legibus”:
“Art. 149-A Os Municípios e o Distrito Federal poderão instituir contribuição, na forma das respectivas leis, para o custeio do serviço de iluminação pública, observado o disposto no art. 150, I e III.
Parágrafo único. É facultada a cobrança da contribuição a que se refere o caput, na fatura de consumo de energia elétrica.”
Ora, como demonstrado, a norma legal de loteamentos não se refere a rede de distribuição elétrica e, não o fez porque a obrigação é da União, via concessionárias e, sua edificação deve preceder a instalação da rede de iluminação, nos termos do artigo 21, inciso XII, letra b, da Constituição Federal que responsabiliza e monopoliza a atividade como da União, sendo que, pode explorar esse serviço diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, “ b – os serviços e instalações de energia elétrica e o aproveitamento energético dos cursos de água, em articulação com os Estados onde se situam os potenciais hidroenergéticos;”.
A recente transferência da manutenção das “redes de iluminação” para os municípios teve o condão de demonstrar que “rede de iluminação” é situação diversa de “rede de distribuição de energia” e como visto, tais serviços são de competências e responsabilidades diversas. A primeira responsabiliza os municípios que pode exigir determinado tipo de braços, de lâmpadas, etc. A segunda é de responsabilidade da União que, pode padronizar a rede para todo o país, estabelecendo a política afim.
Desta forma não podem, os Tribunais de Justiças determinarem que os loteadores são obrigados a instalarem e suportarem os custos da rede de distribuição de energia com base no artigo 2º, §5º da Lei nº 6.766/79, posto que a referida norma não contem essa disposição.
É certo ainda que, ao assim ditar estão contrariando as disposições constitucionais, o Decreto Federal n° 98.335/1989, os contratos entre a ANEEL e concessionária pública, e o fazem sem competência para tanto, pois disciplinam, de forma transversa, sobre contratos e interesses da União e promovem a desobediência por parte das concessionárias, proporcionando-lhes enriquecimento sem causa.
Ainda, considerando o entendimento de algumas Câmaras de nossos tribunais, de que o valor da investimento é ressarcido pelo comprador, tal entendimento sempre se mostrou questionável, já que o preço é determinado pela lei da oferta e da procura e, em certas hipóteses os loteamentos não obtém sucesso de vendas e, muitas vezes o preço de venda não recupera o investimento. Apesar disso a concessionária exige receber a rede gratuitamente, o que, afasta esse argumento.
Nesse segmento foi editada a Medida Provisória 881/19 que estabelece a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica e que, contraria tudo quanto nossos tribunais têm decidido sobre essa matéria, e, de pronto estabelece a presunção de boa-fé do particular e, pelo artigo 3º, inciso III da mesma, restou como direito do particular: “…não ter restringida, por qualquer autoridade, sua liberdade de definir o preço de produtos e de serviços como consequência de alterações da oferta e da demanda no mercado não regulado, ressalvadas as situações de emergência ou de calamidade pública, quando assim declarada pela autoridade competente;…”, o que, de pronto, afasta a possibilidade do Poder Judiciário tomar o parâmetro de fixação de preço para afastar a responsabilidade das concessionárias de indenizar os investimentos em redes públicas de distribuição de energia.
Considerando que, as concessionárias recebem antecipadamente para fazer a expansão da rede elétrica (são previamente ressarcidas pelos investimentos) e que, a administração pública e o empreendedor a substituem na materialização de referidas expansões, resta lógico que, sob pena de enriquecimento sem causa, vedado pelo artigo 884 do Código Civil, é dever da mesma ressarcir a administração pública e o empreendedor pelo investimento feito.
Se alguma dúvida havia sobre a hermenêutica aplicável a essas situações fáticas, o inciso V, do mesmo artigo 5º da Medida Provisória nº 881/19 não deixa qualquer incerteza de que prevalecer a autonomia de vontade do particular tanto na fixação do preço, como em face do ressarcimento do que investe com a previsão legal de que será repetido.
Em conclusão, a obrigação da construção das redes de distribuição de energia é das concessionárias e quando, realizada por terceiros devem as mesmas, prontamente, ressarcir os terceiros sob pena de, nos termos dos artigos 36 e 37 da REN ANEEL 414/2010, além do ressarcimento dos valores investidos compostos com atualização monetária, incidir multa de 5% e juros de mora de 1% ao mês calculados “pro rata die”.
S.M.J., essa é a única interpretação possível sobre a matéria.
Marco Antonio Pizzolato – advogado, especialista em Direito Processual Civil pela PUCCamp, sócio da M. A. Pizzolato Advogados Associados.
Mayana Cristina Cardoso Cheles – advogada, especialista em ciências criminais pela FAINOR, especializando em gerência ambiental pela USP-ESALQ.
Artigo reescrito ante o advento da Medida Provisória nº 881/2019
Sigilo Bancário
Marco Antonio Pizzolato
Mayana Cristina Cardoso Cheles
Segundo Padre Vieira: “Não dizer o homem o segredo que sabe é guardar o segredo das coisas, mas não dizer que sabe o segredo, é guardar o segredo ao segredo e isto é muito maior”.
Neste segmento da vida brasileira, Ad investigações de cidadãos tidos como “pessoas públicas” trouxe a baila a figura do instituto jurídico do sigilo, da cláusula pétrea da Constituição Federal que protege a intimidade do cidadão e, a discussão agora se projeta, em especial o sigilo bancário, ou seja, sobre os atos do COAF.
Se compararmos a situação jurídica do Brasil com outros países, a primeira diferença está no uso da palavra sigilo, enquanto noutras plagas se usa segredo.
O legislador pátrio adotou o vocábulo SIGILO, já tradicional em nosso vernáculo, em lugar de segredo, como o fazem as legislações de outros povos, incluída a lei portuguesa, apesar de serem sinônimas.
A palavra sigilo traduz com maior precisão o dever de guardar segredo, porque vem do latim “sigillum” (de “sigillu” = marca, selo) e traz consigo a idéia do que deve ficar sob selo (envelope lacrado); fora do conhecimento de outrem.
Segredo – escreve De Plácido e Silva – é simplesmente o que está sob reserva, ou é oculto. Difere do sigilo que é o segredo que não deve ser violado, traduzindo, com maior rigor, o segredo que não pode nem deve ser violado, importando o contrário, assim, em quebra do dever imposto à pessoa, geralmente em razão de sua profissão ou ofício.
A partir daí, o sigilo ou segredo tem sua exigibilidade em diversos segmentos da vida do cidadão brasileiro e engloba os segredos de profissão, bancário, fiscal, de correspondência, etc., revelando-se uma cláusula pétrea em nossa Constituição Federal, que trata tal situação no seu artigo 5º, a referir a proteção à intimidade das pessoas.
Algumas situações referem à proteção da intimidade da pessoa como sigilo bancário, médico, fiscal, etc. Outras referem a proteção de interesses patrimoniais, como o segredo de profissão, confidencialidade sobre negócios, etc. Ainda, outras situações referem interesse coletivo, como o segredo administrativo.
Em que pese situações diversas de sigilo, é certo que a conservação das mesmas é de interesse público.
Existem as normas penais que tratam dos crimes referentes à quebra de sigilo.
Até passado bem recente, somente através de ordem judicial, devidamente fundamentada é que ocorria a quebra de sigilo de uma pessoa.
Já recentemente, sob o argumento maior de que era necessária uma maior flexibilidade no acesso aos dados da intimidade de uma pessoa, mormente em face do sigilo bancário, para combater o crime organizado, o rigor do sigilo foi arrefecido em nosso país.
Com esta argumentação o artigo 38 da Lei nº 4.595/64, foi alterado permitindo a flexibilização exigida pelo Poder Executivo e, a partir daí, a própria autoridade administrativa passou a ter poderes para quebra do sigilo bancário.
Na prática a alteração no sigilo bancário deu-se muito mais pelo apetite de arrecadação do Estado do que pela necessidade de se investigar crimes do colarinho branco, crime organizado, etc., mesmo porque, sempre que devidamente fundamentado, os juízes sempre autorizaram a “abertura” do sigilo de uma pessoa.
No nosso país, muitas vezes se altera leis inserindo um artigo em uma legislação que está sendo editada e que, não guarda qualquer relação com a matéria em edição, ou seja, dissimula-se uma norma dentro de outra para ser aprovada sem questionamentos.
A nossa legislação em muito perdeu com o abrandamento das regras de sigilo, e hoje temos o sigilo telefônico, muito mais protegido, em termos legais, que o sigilo bancário, sigilo fiscal. Todos deveriam ter igual proteção.
Ocorre que, como o sigilo telefônico, não se presta para aumentar a arrecadação, sua regulamentação fora mantida.
É sabido que nas ruas de São Paulo, camelôs vendem dados da Receita Federal em mídia eletrônica, em situação de total quebra de sigilo, expondo aqueles que ali tem seus dados registrados, a toda espécie de riscos, tais como extorsões, sequestros, assaltos, roubos, etc.
Neste segmento, o Presidente do Supremo Tribunal Federal, em decisão polêmica, casos em que compartilhamento de dados foi feito sem prévia autorização judicial e, segundo matéria veiculada pela Revista Crusoé, haveria interesse pessoal nessa suspensão.
Ainda que se possa afirmar nesse sentido, ao nosso ver a “abertura” do sigilo bancário deve ser autorizada judicialmente, senão que, deixa de ser “abertura” para ser verdadeira “quebra” ilícita do sigilo bancário, do que, as hipóteses de sigilo serão exceções e a previsão constitucional de proteção a intimidade do cidadão será letra morta.
É preciso repensarmos nossas instituições jurídicas, retomando a seriedade da normatização do sigilo, sob pena de estarmos destruindo um dos pilares da intimidade do cidadão e da sua própria proteção.